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Jumento Passa? (A Primeira Trilha de Serra)

Nelson Bezerra, velho e bom amigo que nos finais de semana fazia trilhas conosco pelas regiões de antigas salinas, mangues e dunas entre Fortaleza e Aquiraz, convidou-me para irmos ao Município de Itapipoca, para a casa dos pais de um amigo dele, o Ednardo. Não lembro ao certo, mas parece que este passeio tinha um objetivo publicitário e/ou fotográfico. O Nelson é um fotógrafo profissional de renome no Ceará, tanto na fotografia artística como na publicitária.

Fomos de trem até Itapipoca, cerca de 120km de Fortaleza. As XL 250 R, ambas vermelhas e ano 1983, novinhas, foram no vagão de carga e nós como passageiros nas poltronas. A composição saiu as 19:00H.

Depois de cerca de duas horas de viagem, descemos as motos do vagão e fomos procurar a casa onde nos hospedaríamos. A casa não se localizava na zona urbana, era uma espécie de sítio ou fazenda. Estava tudo muito escuro, grossas nuvens deviam está encobrindo uma lua cheia e céu estrelado. As estradas eram de terra e havia poças de lama no percurso. Rodamos um pouco perdidos em estradas vicinais, mas não tivemos muita dificuldade para encontrar a casa.

Fomos muitos bem recebidos pelos pais do Ednardo que nos aguardavam para um lauto jantar. Fizemos uma refeição, daquelas que só se come no sertão, acompanhados pelos anfitriões. Era queijo de coalho, cuscuz, tapioca, feijão verde com nata, carneiro guisado, galinha caipira, farofa de ovos, doce de caju, etc. Conversamos sobre diversos assuntos, mas em tempo de chuva cearense gosta mesmo é de falar sobre a esperança de fartura no campo.

Começou a chover forte. Ainda ficamos algum tempo na varanda da casa para mais um dedo de prosa, tomando café e pitando um cigarrinho. O vento trazia o gostoso cheiro de terra e mata molhada. As motocicletas estavam bem abrigadas e mais tarde nos recolhemos ao aposento que nos reservaram.

Foi muito repousante dormir numa preguiçosa rede, numa escuridão total, apenas ao som da chuva no telhado.

O Ceará havia sofrido um período de quatro anos de seca e, neste ano de 1984 as chuvas vieram com muita força. Estávamos em plena quadra chuvosa (também chamada de inverno), que no Ceará vai de fevereiro a maio, e as notícias eram de que muitos pequenos açudes e barragens construídos no período da seca pelo governo para ocupar a população flagelada - que havia perdido suas plantações - nos chamados bolsões da seca, estavam arrombando com a força das águas. Eram os açudes que o cearense, povo que faz piada até com a própria desgraça, chamava de sonrizal; pois se desmanchavam em contato com a água.

Ainda no escuro, pouco antes do dia amanhecer, acordei com um estrondo. O Nelson também acordou. Imaginamos que alguma árvore grande tivesse caído por causa da chuva e voltamos a dormir.

O dia amanheceu sem chuva e durante o café da manhã fomos informados da causa do estrondo noturno: um açude “sonrizal” nas proximidades havia tido sua barragem arrombada pela águas.

Perguntamos se era possível irmos com as motocicletas até o local. “De jeito nenhum, é impossível chegar lá perto de moto”, nos respondeu um empregado da casa. Olhei para o Nelson e falei: -Vamos tentar? Se não der a gente volta.

Pegamos as fieis e valentes XLs e seguimos rumo ao açude, por uma estradinha de terra que nos indicaram. No caminho já dava para ver os estragos causados pela inundação: eram árvores arrancadas, estradas e pequenas pontes destruídas pela enxurrada, com muita água e lama por todo canto. Chegamos ao açude e nele quase já não se via água. Contornamos alguns obstáculos passando por um matagal ralo e colocamos nossas motos sobre a barragem, bem perto da parte que foi levada pelas águas. Quem falou que as motos não chegavam?

Retornamos à casa para apanharmos nossa bagagem e nos despedirmos dos gentis anfitriões.

Nossa programação naquele dia era irmos até a cidade de Itapajé pelo caminho que passava por cima da serra que dividia os municípios de Itapipoca e Itapajé. A serra é conhecida como Serra de Itapajé, mas os habitantes locais também a denominam de Serra do Camará. Este caminho era totalmente desconhecido para nós. Dele apenas tínhamos referências precárias através de mapas que eu conseguia no trabalho.

Como não sabíamos por onde a estradinha começava, fomos para a feira de Itapipoca colher informações. Pergunta aqui, pergunta ali e as respostas que recebíamos sempre eram de que seria impossível atravessar a serra com os nossos “motor”, no linguajar do sertão. Diziam que as chuvas haviam destruído a estrada, que ela estava cheia de erosões, árvores caídas, etc.

Com a lembrança e experiência da ida à barragem do açude arrombado, eu pensava em como explicar que aquelas motocicletas (guiadas por estes “arrojados” pilotos, claro!) conseguiam atravessar terrenos ruins. Daí me veio a idéia de perguntar: -E jumento, passa? Por esta ou aquela estrada, está dando para jumento passar? Comecei finalmente a ter respostas positivas. -Sim, jumento tá passando pelo Camará, diziam. Para me garantir, eu ainda perguntava: -Com cangalha e tudo? Responderam-nos que sim, que jumento estava passando com cangalha e tudo. (cangalha é uma armação de madeira, em forma de W, que se coloca sobre o lombo do animal para que ele transporte carga em suas laterais.).

Ali ficou criado o mote – Jumento Passa? - que eu usaria muitas vezes nos anos seguintes, ao procurar saber se um determinado caminho ou trilha seria viável para se trafegar com as motos.

Foi assim que decidimos enfrentar o caminho de Itapajé pela Serra do Camará. Combinei com o Nelson que se as coisas estivessem realmente muito ruins, a gente desistia e voltava. Era a primeira vez que as XLs encaravam o barro vermelho de uma serra. Como disse antes, nossas trilhas até então se resumiam a dunas e mangues, se bem que eu já tinha experiência em serras e barro molhado quando rodava de DT 180 nas trilhas da Baixada Santista e Ilha Bela.

Logo no começo da subida eu, empolgado, gritava para o Nelsão: -Agora sim camarada, estamos no habitat natural das XLs!

A subida era íngreme, mas a estradinha estava até razoável, com apenas umas poucas erosões profundas e sem muita lama. Havia muito mato crescendo nas beiradas da estradinha, mas a nossa tocada ia tranqüila. Cruzávamos com muitas tropas de jumentos levando suas cargas nas cangalhas. O animal até se desviava das motos, mas a gente tinha que tomar cuidado, pois os jumentos só têm noção do próprio corpo, não das cangalhas que levavam em seus lombos. Se nos distraíssemos, as cangalhas nos atingiriam.

Em um trecho de subida íngreme, eu ia um pouco na frente quando o Nelson sumiu do meu retrovisor. Parei a minha moto imediatamente e, por distração, a deixei em ponto morto. Não teve jeito, fui descendo de ré mesmo com o freio dianteiro travando a roda. Em conseqüência disto, fui para o chão. Que chão coisa nenhuma! Fui cair em um barranco camuflado pelo matagal! Agarrei-me a uma touceira de mato sem encontrar apoio para os pés. Minha preocupação inicial era com cobras e com a moto, que podia cair por cima de mim, já que ela ficou bem na beiradinha do abismo. Eu estava literalmente pendurado quando o Nelson chegou assustado; viu minha moto caída, mas não me viu. Eu gritei por ele e pedi para que segurasse firme a minha moto e me agarrei no pneu dianteiro. Por sorte, a moto ficou presa à uma pequena touceira de mato. Com isto consegui subir e voltar para a estrada. Ufa! Amigos, depois que eu olhei direito para o lugar em que eu estivera pendurado deu um frio danado na barriga. Fiquei pendurado, agarrado a uma moita de mato num abismo com mais de trinta metros de profundidade. Olhei para o céu e disse: -Obrigado, quem quer que seja, muito obrigado!

Depois de resgatado, paramos numa sombra próxima para nos refazermos do susto. Quando a adrenalina baixou, prosseguimos nosso passeio.

Em alguns pontos a estrada tinha sido totalmente levada pela enxurrada. A gente parava, esperava que as tropas de jumentos passassem pelas pedras e depois, um a um colocávamos as motocicletas para passar pelas pedras e erosões. Um ajudando o outro.

Paramos para um lanche e descanso na localidade de Camará. Ali havia apenas uma mercearia onde pedimos farinha, cebolas e sardinhas em lata. Fizemos uma mistura dos ingredientes amassando a sardinha e a cebola com um garfo na farinha de mandioca e dali surgiu uma ótima refeição (para quem está faminto!), acompanhada por refrigerante. Por detrás da mercearia, num terreno próximo havia uma bica natural com água cristalina vinda de uma nascente serra acima. Foi muito agradável nos molharmos naquela água gelada. Como sabem, no Ceará, período de chuvas não significa, obrigatoriamente, baixa temperatura.

Ainda não éramos muito experientes nestes terrenos. Como disse, esta foi a primeira vez que colocamos as XLs numa trilha de serra. Fomos pegando o jeito durante o percurso. Desviando de erosões, encarando leitos de riachos e vencendo muitas pedras. O céu estava cheio de nuvens ameaçadoras e eu temia ter que rodar ali debaixo de chuva e com o chão enlameado. Havia muitos riachos que poderiam se tornar caudalosos com uma chuva forte e as ladeiras, as muitas subidas e descidas ficariam lisas como sabão.

O visual era fantástico e do alto de uma grande descida dava para se ver a pedra do frade; uma formação rochosa com o formato de um frade com seu hábito e capuz. Desta formação que se originou o nome do município de Itapajé (sacerdote de pedra, na língua indígena).

Fiquei muito preocupado com esta descida. Era um longo declive e dava para se ver que ele terminava numa curva acentuada para esquerda e em frente era um grande abismo. O chão estava liso por causa de um breve chuvisco. Não podíamos perder o controle das motos naquele trecho. Perguntei ao Nelson se ele estava seguro para descer o ladeirão e fui observar o terreno a pé. Descansamos um pouco e fizemos a descida sem sustos, mas com muita cautela.

Finalmente, por volta das três horas da tarde, chegamos em Itapajé. Ali almoçamos de verdade, sendo servidos da famosa lingüiça da região.

Saímos de Itapajé ainda com fôlego para andar fora da estrada, quer dizer, pelo menos distante das estradas asfaltadas. O Nelson indicou uma estrada de piçarra e por ela fomos. Ali a paisagem era de caatinga verde. Uma verdejante mata rala e espinhenta. Era a própria aridez nordestina grata pela benção da água. Passamos pela barragem do açude Caxitoré, um grande represa da região e depois de uns 40/50km voltamos para o asfalto.

Entardecia e nós na estrada. As XLs roncando satisfeitas pela BR 020 e novos horizontes de passeios rondando nossa mente.

Escureceu rápido e o céu ficou limpo. Uma lua cheia, imensa, começou a surgir no horizonte bem na nossa frente. Parecia que estávamos pilotando em direção á lua. Tive uma sensação inesquecível de estar subindo de motocicleta para o céu, em direção ao astro prateado. Impressionante como naquele dia a posição da lua em relação á estrada nos dava essa sensação. Falei isto para o Nelson e ele confirmou que também sentia a mesma coisa.

Deste momento único não temos fotos. Porém, de todas emoções daquele dia de aventura, esta da lua a nos guiar marcou o dia e fechou com chave de ouro o nosso passeio, que foi o primeiro de muitas outras serras.

(Veja as fotos na Galeria correspondente)

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